A extrema-direita brasileira: uma
concepção política autoritária em formação [1]
La extrema derecha brasileña: una
concepción política autoritaria en formación
Daniel Aarão Reis
Universidade
Federal Fluminense (Brasil)
daniel.aaraoreis@gmail.com
RESUMO
A vitória de Jair Bolsonaro em novembro de 2018 nas
eleições que o alçaram à presidência da República no Brasil surpreendeu e criou
um estado de perplexidade, próximo da catatonia, sobretudo no campo das
esquerdas, mas também entre forças de centro e das direitas democráticas.
Tornou-se urgente compreender a densidade histórica e o significado político do
fenômeno que nos interpela com a frase da Esfinge: “decifra-me ou te devoro”.
O presente artigo tenta contribuir neste sentido e
está articulado nas seguintes sessões: 1. Contexto internacional da ascensão
das extremas-direitas; 2. A ascensão da extrema-direita no Brasil; 3. O caráter
da extrema-direita brasileira; 4. A construção de alternativas democráticas.
Palabras clave: Teoría de la historia; verdad histórica; estética.
Palavras-Chave:
extrema-direita;
brasileira; política autoritaria; formación
La
victoria de Jair Bolsonaro en noviembre de 2018 en las elecciones que lo
elevaron a la presidencia de la República en Brasil sorprendió y creó un estado
de perplejidad, cercano a la catatonía, especialmente en el campo de la
izquierda, pero también entre fuerzas del centro y derecha democráticos. Lo que
tornó urgente comprender la densidad histórica y el significado político del
fenómeno que nos desafía con la frase de la Esfinge: “descíframe o te devoro”.
El
presente artículo intenta aportar en este sentido y se articula en los
siguientes apartados: 1. Contexto internacional del surgimiento de las extremas
derechas; 2. El ascenso de la extrema derecha en Brasil; 3. El carácter de la
extrema derecha brasileña; 4. La construcción de alternativas democráticas.
Palabras
Clave: La extrema derecha;
brasileña; política autoritaria; formación
1. O contexto internacional da ascensão
das extremas-direitas [2]
O
crescimento político de forças e partidos de extrema-direita e de diversos
tipos de regimes autoritários é uma tendência mundial a partir de fins do
século passado e inícios do presente século.
No
cerne deste processo encontra-se o que se convencionou chamar de revolução
digital ou informática que tem mudado radicalmente os padrões civilizatórios da
inteira humanidade. À semelhança da chamada civilização fordista que, em
fins do século XIX e inícios do século XX, revolucionou em profundidade as
sociedades humanas, a civilização da informação, produto da atual
revolução, têm igualmente produzido efeitos sociais, políticos, culturais e
econômicos profundamente desestabilizadores e transformadores.
No
quadro desta nova revolução, destacam-se alguns aspectos principais no campo da
economia e da sociedade: a consolidação da hegemonia do capital financeiro, com
ênfase para os capitais especulativos, protegidos por legislações favoráveis,
incluindo-se aí os chamados paraísos fiscais; o enfraquecimento drástico das
legislações que regiam os movimentos nacionais e internacionais de capitais e
mercadorias; a privatização de setores econômicos e serviços públicos, mesmo
dos que eram até então considerados estratégicos à segurança pública e nacional;
a fragilização correspondente da capacidade de intervenção e regulamentação dos
Estados Nacionais; o
surgimento de novos setores/atividades dinâmicos, como, entre outros, a informática, a biotecnologia, a robótica, a
inteligência artificial, de alto nível de monopolização ou oligopolização, com
impactos radicais na área das comunicações (internet, mídias sociais, etc.); a
realocação internacional da produção industrial mundial e o declínio acelerado
do peso demográfico das classes operárias nos países capitalistas mais
poderosos; a desarticulação e a precarização dos mercados de trabalho
(uberização) e das instituições sindicais tradicionais; o surgimento de novos
polos de desenvolvimento (Índia, China) e de megamercados regionais, alterando
o equilíbrio instaurado no pós-II Guerra Mundial; finalmente, mas não menos
importante, o aprofundamento acelerado das desigualdades sociais e econômicas (Piketti, 2014).
Os
regimes de democracia representativa têm evidenciado notável incapacidade para
lidar com os desafios decorrentes deste conjunto de mutações. As instituições
políticas e jurídicas apresentam-se desconectadas das demandas sociais e os
partidos e sindicatos perdem prestígio e capacidade de articulação e de
mobilização. Entre os jovens e as classes populares acentua-se o desinteresse
em relação aos processos eleitorais e a desconfiança em relação a um sistema
político criticado como ineficaz, corrupto e desmoralizado (Levitsky e Ziblatt,
2018; Runciman, 2018). A rigor, trata-se de um processo em curso desde os anos
1960/1970, a partir de quando emergem, cada vez mais, como protagonistas das
lutas políticas, movimentos sociais que não se deixam enquadrar pelos jogos institucionais
ou/e eleitorais (Aarão Reis, 2018).
Instaura-se
um pouco por toda a parte uma sociedade da insegurança (Fraser, 2007).
Os que perdem posições ou não conseguem mantê-las, as grandes massas de
assalariados ou dos que vivem do próprio trabalho, sentem-se amedrontados. As
referências culturais que pareciam sólidas desmancham no ar. Ações
terroristas, desde 2001 (Ash, 2011); crises
econômicas e catástrofes naturais acentuam uma atmosfera de incertezas e
desorientação.
As
forças e os partidos políticos reformistas, democráticos ou socialistas não têm
conseguido apresentar propostas que protejam os interesses das camadas
populares e controlem ou atenuem os efeitos desestabilizadores destas
tendências. São identificados, com ou sem razão, como sócios de regimes
incapazes de defender as grandes maiorias, o que se tornou particularmente evidente
no enfrentamento da crise econômica de 2008, quando o custo de superação de
seus efeitos desabou quase que exclusivamente nas costas dos trabalhadores
assalariados (Przeworski, 2019).
É
neste quadro geral de desespero e desesperança que se reforçam as tendências
e propostas nacionalistas e autoritárias, num processo de reação
nacionalista[3],
quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita[4].
O
fenômeno Donald Trump nos
Estados Unidos, o crescimento das forças de extrema-direita na Europa Ocidental
(Itália, França e Inglaterra) e Central (Hungria e Polônia), na Ásia (Índia e
Filipinas) e na América Latina (Chile, Colômbia e Brasil) atestam a crescente
existência deste processo. Uma de suas principais particularidades é que tais
forças não se confrontam abertamente com as instituições democráticas, mas as
instrumentalizam, corroendo-as por dentro, desfigurando-as. Combinam
eficazmente o recurso às ruas e o uso intenso das chamadas mídias sociais no
quadro de opções nacionalistas, antidemocráticas e conservadoras do ponto de
vista social e religioso[5].
2.
A ascensão da extrema-direita no Brasil
A
vitória de Jair Bolsonaro insere-se neste quadro internacional. É a expressão
brasileira destas tendências.
Para
compreendê-la, uma vez contextualizada no plano internacional,
tenho proposto a
articulação de três temporalidades: na longa
duração, o estudo das tradições
autoritárias no país; na média
duração, a deterioração do sistema
político
entre a promulgação da Constituição de 1988
e as eleições de 2018; na curta
duração, a incidência da campanha eleitoral e seus
efeitos.
2.1. As
tradições autoritárias: a longa duração
São
densas e pesadas as tradições autoritárias no Brasil. Entre outras,
destacam-se:
-
O racismo. Antes de serem tardiamente abolidas, as relações escravistas
disseminaram-se por toda a sociedade (escravismo doméstico ou de proximidade),
gerando desprezo pelo trabalho manual e relações hierárquicas mantidas pela
violência. O processo peculiar de miscigenação, apresentado como antídoto à
discriminação racial, apenas disfarçou formas onipresentes de racismo,
evidenciadas em inúmeras evidências: desigualdades de emprego e de renda;
violência policial; população carcerária, etc.;
-
As desigualdades sociais. Apesar do considerável progresso econômico,
registrado em particular entre 1930 e 1980, mantiveram-se e reproduziram-se padrões brutais de
desigualdades regionais e sociais, configurando amplas maiorias como
sub-cidadãos, ou cidadãos de segunda classe, cujos direitos – proclamados em
leis e mesmo em constituições – não se concretizaram na prática social;
-
O patrimonialismo e o mandonismo. Fundamentos das relações sociais agrárias que
se ancoram no tempo colonial, conservaram grande força. Em artigo recente, o
antropólogo Roberto Da Matta, estudioso
desta e de outras tradições, referiu-se “ao colonialismo autoritário e
burocrático, radicalmente católico e anti-igualitário”, combinado a laços de
puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro”[6]. O
processo de crescimento industrial e urbano não dissolveu sua força e
incidência, nem a República, proclamada em 1889, foi capaz de neutralizar seus
efeitos. O acesso limitado à plena cidadania – apesar do que dizem os textos
legais – reproduz a preeminência das relações pessoais em detrimento de códigos
legais impessoais;
-
A discriminação de gênero. Os avanços no
sentido da emancipação da mulher são
muito recentes, datando dos anos 1970. As desigualdades profissionais e
de
renda, o limitado acesso aos níveis mais altos de
prestígio social e de
remuneração, a criminalização da
interrupção voluntária da gravidez, os
índices
de violência doméstica e estupro, atestam a
subordinação violenta da “segunda
metade do céu”;
-
O raquitismo democrático. Uma república proclamada através de um golpe de
estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a
seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e
limitada das liberdades democráticas, os principais saltos econômicos
registrados sob dominação de regimes ditatoriais (1937/1945 e 1964/1979), tudo
disso deixou marcas profundas nas tendências políticas de direita e de
esquerda. O reconhecimento de amplas liberdades democráticas, envolvendo
direitos civis, políticos e sociais é muito recente, datando dos últimos anos
do século XX (Constituição de 1988).
A
combinação destes aspectos na longa duração estruturou uma sociedade marcada
pela desigualdade, hierarquia, violência, intolerância e discriminações
(Schwarcz, 2019; Starling, 2019).
Sem
embargo, foi notável como amplos círculos – políticos e intelectuais – tenderam
a subestimar a força destas tradições em passado recente e a apresentar a
democracia brasileira como “consolidada”. Um caso típico de cegueira política e
histórica.
Nunca
foi tão urgente como hoje superar este equívoco.
Tenho
me empenhado em fazê-lo desde os primeiros anos deste século, chamando atenção
para as “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a
sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das
classes dominantes e da repressão, (ressalvado o papel fundamental desta
última), mas contaram com apoios transversais em todos os níveis da sociedade.
Efetivamente, em torno dos dois regimes ditatoriais que se impuseram no país no
século XX (1937-1945; 1964-1979[7]),
foi possível construir não raro um consenso social significativo, o que oferece
subsídios para a compreensão da instauração quase pacífica de ambos e dos
processos também pacíficos de sua superação. Importantes pesquisas têm
demonstrado a adequação desta interpretação[8].
Considerar
as tradições autoritárias para compreender a atual ascensão da extrema-direita
não deve conduzir, porém, à sua absolutização[9].
Apesar destas tradições, maiorias expressivas elegeram à presidência da
república o sociólogo de centro-esquerda Fernando Henrique Cardoso (1994/2002),
o líder operário, Luiz Inácio
Lula da Silva (2002/2010) e Dilma Rousseff (2010/2016), ex-militante da luta contra a ditadura. Em outras
palavras: as tradições autoritárias condicionam opções, mas não as determinam
exaustivamente. Como gostava de dizer o intelectual israelense, Amoz Oz: “o
passado nos pertence, não pertencemos ao passado”. As tradições, embora
poderosas, não podem expulsar a política da história. A longa duração não
exclui a avaliação da média e curta durações. Cumpre agora analisar estas
últimas.
2.2. A média
duração: a grande conjuntura 1988/2018
Tornou-se
comum denominar o período que se inaugurou com a aprovação da Constituição de
1988 como nova república[10].
Segundo os adeptos da denominação, ela teria entrado em crise com o impeachment
de Dilma Rousseff, em
2016, e sido definitivamente enterrada com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018[11]
(Alonso, 2019; Solano, 2019).
Aceite-se
ou não a periodização, o fato é que a grande conjuntura entre 1988 e 2018
oferece uma plataforma interessante para avaliar as circunstâncias e as opções
que levaram à perda radical do prestígio de um sistema político que parecia tão
promissor em fins do século XX. Trata-se de uma reflexão importante, eis que a
vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro está intimamente vinculada à
desmoralização da sistema político atual.
Entre
outros aspectos, o que marca a trajetória da nova república do ponto de
vista político é a preeminência da polarização entre o Partido da
Social-Democracia Brasileira/PSDB e o Partido dos Trabalhadores/PT[12].
Inquestionavelmente, os dois partidos encarnaram as aspirações reformistas no
sentido da construção de uma sociedade democrática e menos desigual.
A
visibilidade, o prestígio e o poder adquiridos por eles corresponderam a
políticas de defesa dos interesses das grandes maiorias. Entre muitas outras, o
controle da inflação, empreendido nos anos de governo do PSDB, com impacto na
redução das desigualdades sociais e, com até muito maior impacto, as políticas
de distribuição de renda e as chamadas afirmativas contra o racismo,
implementadas nos anos de governo do PT, em particular nos mandatos de Lula
(2002/2010). Entretanto, o ímpeto reformista dos dois partidos foi se
arrefecendo, configurando-se, em ambos os casos, um reformismo mole (Singer,
2012). Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de
memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período
ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos
humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade cometidos pelo
Estado brasileiro durante as ditaduras do século XX (Aarão Reis, 2019a).
O inventário das cicatrizes deixadas pela ditadura deixou de ser feito, com
evidente prejuízo para a consciência cidadã[13].
Ao
perderem as eleições para o PT, em 2002, o PSDB e seu líder, Fernando Henrique
Cardoso, já registravam um considerável desgaste. Alianças consideradas sem
princípios com partidos e grupos notoriamente conservadores e corruptos haviam
corroído sua aura reformista e inovadora. Nada, no entanto, que ameaçasse sua
posição de polo insubstituível nas lutas
políticas institucionais.
Quanto
ao PT, já no primeiro governo de Lula, escândalos de corrupção, como o do
chamado mensalão (junho, 2005), começaram também a abalar o prestígio e
a colocar em dúvida os compromissos e a vocação reformista do partido e do
presidente. Entretanto, as dúvidas pareceram superadas com a reeleição de Lula
(2006), e ao longo do segundo mandato (2006/2010), quando o país viveu momentos
de intensa euforia social e política, o que se confirmaria com a eleição de
Dilma Rousseff (2010). A nova
república parecia segura e não poucos celebravam a consolidação da
democracia no Brasil, chancelada internacionalmente com a aprovação do país
como sede da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas de Verão (2016).
A
partir de 2010, no entanto, começaram a se fazer sentir os impactos da grande
crise econômica mundial de 2008, muito subestimados e por isso mesmo mal
atenuados ou controlados. Num quadro de agravamento das contradições, demandas
sociais começaram a explodir em vários níveis: por emprego; por serviços
públicos de qualidade; por políticas de combate à corrupção, cuja existência
tornou-se assunto nacional a partir de sucessivos escândalos envolvendo
empresários e políticos; por políticas positivas em relação à segurança que,
nas cidades, se tornava uma questão maior para todas as classes sociais.
As
grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda
insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas,
expressas por multidões nas ruas e praças públicas.
Entretanto,
face a este conjunto de desafios, PT e PSDB mostraram-se incapazes de oferecer
propostas construtivas e credíveis. Enredados em suas querelas e jogos de
poder, perdida sua vocação reformista original, era como se estivessem
distanciados da sociedade, sem nexo com os problemas que atormentavam as
pessoas comuns. Começou a brotar a ideia
de que o sistema político já não funcionava a contento. Falido? Alguns
começavam a dizer que estava podre.
Foi
numa atmosfera de exasperação de contradições, condições propícias para a
emergência de lideranças salvacionistas, outsiders supostos ou
reais, que se abriu o ano eleitoral de 2018[14].
Ainda não estavam, porém, jogados todos os dados que ensejariam a vitória de
Jair Bolsonaro.
Eles
seriam jogados na campanha eleitoral, na curta duração. Daí porque ser tão
importante analisar esta temporalidade. Em caso contrário, como já se disse, a
política será expulsa da história.
2.3. A
campanha eleitoral de 2018: a curta duração
A
análise da campanha eleitoral, na temporalidade da curta duração, é
indispensável para a compreensão da ascensão da extrema-direita ao governo pelo
voto.
Em
pesquisas realizadas em 22 de agosto, menos de dois meses antes do primeiro turno, Bolsonaro ainda se mantinha em 22% das intenções de
voto, e poucos acreditavam que fosse capaz de alcançar patamares muito mais
altos. Daí a quase três semanas, em 10 de setembro, ele ganhara apenas mais 2
pontos, chegando a 24% das intenções de voto[15].
Em outras palavras, apesar das tradições autoritárias e do desgaste do sistema
político, não havia ainda certeza, muito pelo contrário, a respeito do sucesso
da candidatura salvacionista de extrema-direita.
Que
circunstâncias e opções conduziram à sua vitória?
De
um lado, as esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento.
Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais. Além disso, o
PT recusou-se a avaliar a onda de fundo antipetista que permeava a sociedade,
muito forte entre as classes médias, mas alcançando também camadas populares.
Descartou assim a hipótese de apoiar um candidato de outro partido. E manteve durante longo e precioso tempo, em
movimento suicida, a (anti) candidatura de Lula, ilegal na medida que ele fora
condenado em segunda instância[16].
Quando o partido,
finalmente, resolveu apoiar formalmente a candidatura do ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo,
Fernando Haddad, o fez com ressalvas, apresentando-o como se fosse um peão de
Lula. Tolhido pelos erros e inconsequências do PT e de Lula que sempre se
recusaram a produzir qualquer tipo de autocrítica, Haddad não conseguiu apresentar propostas para neutralizar ou
conter a corrupção em larga escala e a insegurança nas grandes cidades, dois
grandes temas da campanha eleitoral, explorados de forma tosca, mas eficaz,
pelo candidato de extrema-direita. Entre os dois turnos, Haddad recuperou
terreno, cultivou personalidade própria, formulando propostas objetivas e
convincentes, mas já não houve tempo político para reverter os resultados
desfavoráveis.
Cumpre
destacar o fracasso da candidatura de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo e um dos líderes mais importantes do
PSDB. Montando poderosa frente partidária, dispondo de vultosos recursos
financeiros, agrupou muitas forças de centro e das direitas democráticas.
Imaginava-se que a disputa tenderia a ser, mais uma vez, entre ele e o
candidato do PT[17].
No entanto, em amplos contingentes do eleitorado, prevaleceu a percepção de
que, para derrotar o PT, Bolsonaro reunia melhores condições do que Alckmin. Houve, assim, nas três últimas semanas da
campanha, um trânsito maciço de votos para o candidato da extrema-direita,
garantindo sua vitória.
O
vitorioso não se beneficiou apenas dos erros adversários. A partir de suas
bases mais radicais, nas forças armadas e policiais[18], soube construir alianças surpreendentes e
diversificadas. Escolheu como seu ministro da economia, um empresário da
especulação financeira que lhe abriu as portas para uma aliança com os capitais
financeiros. No campo da economia também estruturou apoios entre os empresários
vinculados à exportação de produtos agrícolas, o chamado agronegócio, e com
garimpeiros e madeireiros comprometidos com a devastação das florestas e com a
abertura de fronteiras agrícolas.
Definindo o juiz Sergio Moro como ministro da Justiça, ganhou a
confiança de todos os que consideravam a corrupção e a segurança grandes
problemas nacionais[19].
Explorando uma pauta conservadora do ponto de vista dos costumes, teceu laços
com as igrejas evangélicas, com crescente força no país[20].
Tais alianças seriam potencializadas pelas bancadas parlamentares ruralistas, armamentistas e religiosas,
ditas BBB (do boi, da bala e da bíblia), conformando apoios eficazes na
campanha eleitoral.
Restaria
ainda mencionar duas importantes referências: o atentado sofrido por Bolsonaro,
em 6 de setembro de 2018, que lhe permitiu afastar-se dos debates onde suas
performances o desfavoreciam[21] e
a organização e intensa exploração de
uma sofisticada rede de comunicações, acionando de modo profissional as
chamadas mídias sociais, seja para divulgar propaganda positiva, seja para
disseminar falsas informações (fake news).
Combinaram-se,
assim, como sempre, erros (dos adversários) e acertos que beneficiaram o
candidato vitorioso.
Acredito
que a elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro
passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão
brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições
autoritárias na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração;
e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral, na
curta duração.
Cumpre
agora discutir melhor o caráter desta vitória e do governo liderado por Jair
Bolsonaro desde 1° de janeiro de 2019.
3.
O caráter da extrema-direita brasileira
A
surpreendente vitória de Jair Bolsonaro, como já referido, suscitou um clima de
grande perplexidade. Como é usual, as primeiras explicações e interpretações
procuraram no passado paralelos ou fontes para entender o fenômeno.
Alguns
afirmaram que o Brasil
teria voltado aos anos 1960 e estaria na iminência de um golpe de estado, como
o que se verificou em 1964. Outros preferiram ver semelhanças com a conjuntura que levou à promulgação
do Ato Institucional n° 5, editado em
dezembro de 1968, que radicalizou a ditadura então existente[22].
Numa incursão a um passado mais distante, foram invocadas as
experiências do movimento integralista brasileiro nos anos 1930, da ditadura do
Estado Novo e, num plano mais geral, formularam-se associações – controvertidas
– com o fascismo italiano e mesmo com o nazismo alemão, como se verá
adiante.
Tais
interpretações merecem discussão. Entretanto, como estou convencido de que a
ascensão atual da extrema-direita constitui um movimento original, cumpre,
antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e
empreender, se for possível, sua conceituação.
Conforme
esboçado na análise da campanha eleitoral a vitória de Jair Bolsonaro deveu-se
à articulação de uma frente heterogênea que pode ser apresentada em forma de
círculos, hierarquizáveis de acordo com a fidelidade a Bolsonaro.
Um
primeiro círculo – núcleo forte e bastião do pensamento da
extrema-direita – é constituído pelos oficiais das forças armadas, em
particular do exército, mais os oficiais e suboficiais das Polícias Militares,
da ativa e da reserva[23].
Jair Bolsonaro, através de longa carreira parlamentar, projetou-se não apenas
como representante dos interesses corporativos destas gentes, mas também como
um dos únicos políticos, e com grande audácia, a resgatar em chave positiva a
experiência da ditadura, inclusive seus métodos violentos de torturar e matar
adversários. A pauta da defesa dos costumes conservadores é uma outra importante
referência a fidelizar estas bases a Bolsonaro, pois, em comum, cultivam o
conceito de guerra cultural ou guerra híbrida, a ser travada
contra os agentes – instituições e partidos – acusados de promover a destruição
das tradições, da moral estabelecida, dos bons costumes e das tradições
políticas e éticas da nação. Ingredientes importantes nesta perspectiva são as
críticas ao globalismo, ao enfraquecimento dos estados e culturas
nacionais, e aos novos métodos – encobertos e camuflados – através dos quais
operariam novas e velhas esquerdas em sua luta permanente pelo controle da
sociedade e do poder. Tais referências não podem ser nem exclusivamente nem
principalmente atribuídas a Olavo de Carvalho, pseudo-intelectual cujas
manifestações caricaturais não deveriam servir para encobrir núcleos de
formulação mais consistentes, que elaboram tais ideias há muitos anos no
interior das, e protegidos por, estruturas institucionais das forças armadas.
Foi no interior do estado maior do Exército que se formou uma equipe, ainda nos
anos 1980, devidamente autorizada pelo ministro da arma, general Leonidas
Gonçalves, que formulou volumoso livro, com um resgaste da ditadura em chave
positiva, enfatizando-se o papel dos militares como tutores da república e as
sucessivas ameaças empreendidas pelas esquerdas no sentido da dissolução da
nacionalidade brasileira. O texto, intitulado Orvil (anagrama de livro) só foi
publicado mais tarde (Maciel e do Nascimento,
2012), mas se constituiu, desde então, numa referência para a
extrema-direita militar e civil.[24].
Um
segundo círculo, não menos importante, é constituído por setores
populares de classe média, alguns com afinidades profissionais (pequenos
empreendedores, caminhoneiros, taxistas, etc.). Acionam as novas mídias sociais
(whatsapp, facebook,
twitter, youtube, blogs, etc.), financiadas por empresários bolsonaristas. Os
valores compartilhados de extrema-direita compreendem, entre outros, o recurso
à violência para matar criminosos comuns, o conservadorismo social, o ódio às
lutas identitárias, etc. Têm sido importantes nas ações de ruas e na
intimidação de adversários, mas seus níveis internos de organização ainda são
precários. Neste segundo círculo também poderiam ser incluídos as milícias.
Constituídas por ex-integrantes das polícias militares, além de criminosos
comuns, elas vêm ganhando força ao longo do atual século em algumas grandes
cidades. Disputam espaço com facções de criminosos comuns no controle de
atividades ilegais e semilegais e extorquem comunidades de diversos tipos,
periféricas às grandes cidades, vendendo proteção em troca de segurança.
A despeito de sua autonomia enquanto organizações criminosas, aparecem como um
potencial e temível braço armado, eventualmente disponível para
aterrorizar e matar adversários[25].
As
igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam
monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de
Bolsonaro[26].
Destaca-se também aí a pauta dos costumes. De modo geral, os evangélicos
acreditam nos valores do trabalho, do ascetismo, do esforço próprio, da ajuda
mútua e abominam as lutas identitárias, o consumo de drogas e a revolução comportamental que é um
aspecto das transformações civilizacionais em curso. Apoiadas em crescente
adesão social[27],
fortes bancadas parlamentares (a bancada da Bíblia) e poderosos meios de
comunicação, tornaram-se uma respeitável força política no país. Podem
desempenhar papel importante na viabilização de um novo partido político
bolsonarista, o Aliança
para o Brasil, ainda em formação[28].
Mas seria um equívoco imaginar que seriam dóceis aliados, pois há contradições
entre os valores cultivados pelos evangélicos e determinados aspectos do credo
bolsonarista, como o recurso à violência (bandido bom é bandido morto) e
a conciliação consequente com as milícias, rejeitadas pelos evangélicos, e a
liberação dos jogos de azar, que eles execram.
Num
quarto círculo, encontram-se vastos setores das classes médias afluentes
(profissionais liberais, assalariados de padrão mais alto, etc.),
principalmente no sul e sudeste do país. Desorganizadas, unificaram-se em torno
de Bolsonaro menos pelo compartilhamento de valores ideológicos e mais pela
luta contra a corrupção e o antipetismo. A nomeação do Juiz Sergio Moro para o
cargo de Ministro da Justiça consagrou a adesão destas camadas sociais a
Bolsonaro, mas sua recente demissão, em 24 de abril passado, e suas denúncias
contra a conciliação de Bolsonaro com a corrupção, abalaram a confiança destas
bases, registrada nos índices de confiança aferidos por diversas pesquisas.
Num
quinto círculo, finalmente, encontram-se setores importantes das classes
dominantes brasileiras, do capital financeiro internacionalizado ao
agronegócio, cujas propostas costumam ser veiculadas pelos grandes meios de
comunicação. Eles não têm voto, mas têm recursos que condicionam votações. Num
primeiro momento, viam com desconfiança a extrema-direita, preferindo um
candidato de centro ou de centro-direita para derrotar o petismo. Neste
sentido, apostaram suas fichas no PSDB e em seu candidato, Geraldo Alckmin. À vista do fracasso
deste último, porém, migraram em massa para a candidatura Bolsonaro, na
expectativa de controlar e domesticar seu extremismo. A escolha de Paulo Guedes
como ministro das finanças, um homem comprometido com programas e reformas
ultraliberais, contribuiu para que se viabilizasse o apoio destas gentes.
Para
encerrar, cumpre enfatizar o potencial de apoio social do qual dispõe Bolsonaro
em camadas populares, o que, em parte, é assegurado pelo trabalho de base dos
evangélicos, notoriamente ramificados, de forma capilar, nas comunidades mais
pobres do país. Sua capacidade de comunicação, auxiliada por um trabalho
profissional nas mídias sociais, só perde para a de Lula. Gestual e palavras
obscenas, que chocam as camadas de elite e letradas do país, são, muitas vezes,
encaradas como expressões de coragem e autenticidade, qualidades
escassas entre os políticos profissionais. Não esquecer as expressivas votações
de Bolsonaro nos grandes centros urbanos e nas capitais dos Estados. Mesmo na
região Nordeste, que permaneceu majoritariamente fiel ao PT e a Lula, Bolsonaro
venceu em grandes cidades consideradas de larga tradição de esquerda, como
Recife, capital de Pernambuco. Restaria acrescentar que pesquisas recentes, ao
tempo que registraram queda importante da popularidade de Bolsonaro nas classes
médias, flagraram um crescimento dele nas camadas populares, o que foi
atribuído ao auxílio de emergência liberado no quadro da atual pandemia[29].
A
multiplicidade e a pluralidade das bases de apoio que garantiram a vitória da
extrema-direita evidenciam seu caráter profundamente heterogêneo. Uma frente
política constituída de forma apressada, sem propostas claras para uma série de
problemas fundamentais do país (educação, saúde, transportes públicos,
segurança etc.), apoiada em ideias simplistas, salvadoras, que ignoravam
– e ignoram - a complexidade das questões com as quais teria que lidar caso o
candidato fosse sufragado. Apesar de declarações altissonantes – e de bravatas
em série – o que se mostra claramente é que o governo e a extrema-direita não
foram capazes de gestar até o momento uma doutrina coerente. Suas formulações
encontrar-se-iam num estado gasoso, se a metáfora me for permitida, o
que dá conta das improvisações e acochambrações diversas, mal encobertas por
uma estridente e poderosa propaganda. Trata-se de uma força política cujas
concepções ainda estão em formação, como uma nebulosa daí as dificuldades em
conceituá-la, embora sejam bastante claros – e perigosos – seus propósitos
autoritários e antidemocráticos.
Tais
propósitos, como já foi assinalado, tem raízes autoritárias no passado
brasileiro. Entretanto, a extrema-direita atual é bastante diferente das
referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a
aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos
anos 1930 e, em particular, com experiência do fascismo.
De
um lado, as conjunturas internacionais que ensejaram as ditaduras e o fascismo
histórico (e o integralismo) tem características qualitativamente diferentes
das atuais. As ditaduras exprimiam alianças de classe bem definidas e projetos
claros de modernização autoritária. Não é o caso da atual extrema-direita[30].
Quanto
ao integralismo e ao fascismo, caberia uma análise em dois níveis[31].
Se
pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identifica-lo
com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracteriza-se por propostas
de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade,
de mobilização intensiva e agressiva da população. Aciona um nacionalismo
exacerbado, militar, violento e expansionista e voltado para a construção de um
projeto de renovação totalitária da sociedade, típico das direitas
revolucionárias. Ora, este conjunto de características e de referências não se
encontra no bolsonarismo[32].
Do
ponto de vista da adequação e eficácia políticas do emprego do termo, há aí uma
outra discussão, mas preferimos empreendê-la no próximo item, destinado ao estudo das alternativas
disponíveis para lutar contra a extrema-direita.
Ao
longo do primeiro ano de mandato (2019) e até o momento (junho de 2020), a
incapacidade do governo de lidar com os desafios que enfrenta, tem gerado grande desgaste a
Bolsonaro, cujos índices de confiança despencaram. Tendo sido sufragado por
57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos), os índices de confiança de
que ainda dispõe situam-se em torno de 30%[33].
Entretanto,
as oposições não se apresentam em melhor situação. As forças de esquerda, de
modo geral, permanecem no fundo da cena, sem propostas claras e sem capacidade
de intervenção e mobilização. Os choques e enfrentamentos políticos se dão
entre a extrema-direita e forças de centro e de centro-direita democráticos,
representadas pelo Parlamento e pelo Judiciário, em particular o Supremo
Tribunal Federal, constantes objetos dos ataques de grupos mais radicais da
extrema-direita. Apesar das referências a um possível impeachment, a hipótese
ainda parece altamente improvável, pelo menos a curto prazo. É como se no palco
político, em vez de duas forças, estivessem se confrontando duas fraquezas.
A extrema-direita não tem capacidade – ainda não – de derrotar o Congresso e o
Judiciário. Mas estas instituições também não conseguem remover Bolsonaro.
Nestas
circunstâncias, como entrever e propor alternativas?
4.
A democracia face à extrema-direita. Desafios & Alternativas
Entre
os que observam a cena política brasileira, há um consenso de que a maioria
votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018 deveu-se muito mais
ao antipetismo do que propriamente ao entusiasmo suscitado pelas propostas e
características do candidato vitorioso.
No
quadro da ampla e heterogênea frente que se formou em torno da extrema-direita,
as direitas e o centro democráticos cultivavam a expectativa de que seus
excessos seriam contidos, neutralizados ou domesticados.
Não
foi o que ocorreu.
Bolsonaro
e seus aliados mais radicais, ao contrário, embalados pelo sucesso da vitória
eleitoral, autoconfiantes, desferiram, desde a posse, em janeiro de 2019, uma
campanha permanente de agressões e ameaças tendo como objeto principal as
instituições democráticas, mas alcançando também políticos considerados
potenciais rivais e não poupando inclusive aliados desqualificados como
moderados. Em vez de um golpe frontal que muitos temiam, desenhou-se uma
estratégia de desgaste progressivo das margens democráticas, uma perspectiva de
corroer por dentro as instituições, mantendo-as, no limite, como se
fossem cascas desprovidas de conteúdo, num estilo semelhante ao empreendido por
V. Orbán na Hungria[34].
Ameaçadas,
as forças políticas de centro e de direita democráticas, hegemônicas no
Parlamento e no Poder Judiciário, reagiram, marcando limites às pretensões
ditatoriais de Bolsonaro. As tendências e os métodos chavistas, de
enfraquecimento progressivo das instituições democráticas, atribuídos pelas
direitas ao PT e a Lula, estariam sendo, na prática, adotados por Bolsonaro[35].
Começou então uma queda-de-braço. Manifestos de intelectuais, juristas e
profissionais liberais, publicados pela imprensa, afirmavam-se na defesa das
instituições democráticas. Panelaços contra Bolsonaro, em várias cidades
evidenciavam um crescimento da insatisfação.
Nesta
altura, a contundência dos insultos e bravatas foi se revelando mais expressão
de desejos frustrados de um líder paranoico, inconformado face aos limites
objetivos de seu poder pessoal, do que de uma força política real e organizada,
capaz de concretizar na prática as ameaças enunciadas[36].
Configurou-se, como apontado acima, uma disputa de fraquezas: entre a
extrema-direita, liderada por Bolsonaro e a direita/centro democráticos,
representados por líderes parlamentares e ministros do Supremo Tribunal
federal. Nenhum lado mostrava-se capaz de derrotar o outro.
Recentes
acontecimentos escandalosos, envolvendo a prisão de um homem das sombras,
Fabrício de Queiroz, faz-tudo de Bolsonaro e de sua família, a demissão
do ministro da Educação, A. Weintraub, vinculado à militância extremada, além de outras decisões do Supremo Tribunal
Federal, empreendendo processos contra
grupos violentos de extrema-direita, mas que podem, no limite, implicar o
próprio Bolsonaro, resultaram numa atmosfera de desorientação no campo da
extrema-direita, acompanhada de um relativo distensionamento, inédito, desde
que Bolsonaro assumiu a presidência da república[37].
Já
se fazem ouvir vozes, cautelosas, prognosticando o início de uma nova etapa no
governo de extrema-direita, onde este, afinal, aceitaria uma certa dose de
controle e domesticação. Difícil imaginar que isto possa acontecer, dadas as
características e a trajetória de Bolsonaro. A ameaça à democracia representada
pela extrema-direita continua bem real. Suas bases sociais não podem ser
subestimadas, podendo inclusive crescer na direção das camadas populares[38].
O dado novo é que as forças de esquerda
democrática começam a sair do torpor que as caracterizou desde a derrota
eleitoral de 2018. Entre elas cabe distinguir as ações empreendidas pelas esquerdas
de estado e pelas esquerdas sociais.
A conceituação tem sido defendida por
Carlos Vainer, professor vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional/IPPUR/UFRJ). As esquerdas de estado seriam
representadas pelos partidos políticos ou outras associações que disputam
espaços institucionais, e ritmam seus movimentos de acordo com os calendários
eleitorais. Já as esquerdas sociais seriam constituídas por lideranças
que operam no tecido social, articulando e organizando movimentos que se
desdobram na base da sociedade. Estas esquerdas, sempre plurais, não
necessariamente haverão de estar desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil
atual, porém, no quadro da nova
república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas, na medida em que
as primeiras – as esquerdas de estado – têm sido aspiradas pelas alturas
institucionais das lutas políticas, afastando-se claramente das dinâmicas,
aspirações e movimentos que se desdobram nas bases da sociedade, onde atuam as esquerdas
sociais[39].
Em contraste com uma situação de anomia
que as marcou desde a derrota eleitoral de 2018, as esquerdas de estado
ensaiam articulações no sentido da constituição de uma frente política em
defesa da democracia.
Já as esquerdas sociais
evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da
pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que
caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou
incompetência. Nas ruas, apesar dos
interditos impostos pela pandemia, promovem manifestações, que passaram a
disputar os espaços públicos com os grupos de extrema-direita. Nas mídias
sociais, fervilham ações de diferentes tipos – debates, palestras, lives.
Intelectuais e artistas formulam plataformas comuns, assinam manifestos e se
pronunciam em defesa da democracia[40].
É bastante provável que, desaparecidos ou atenuados os efeitos da pandemia,
brotem importantes movimentos sociais, dando vazão a demandas por melhores
condições vida, serviços públicos decentes, renda básica para todos, diminuição das desigualdades sociais etc.
Trata-se
de garantir as margens democráticas existentes, reunindo em torno delas, sem
exclusões, todos os que estiverem dispostos a lutar por sua preservação. A
ideia de concretizar este movimento em torno de uma plataforma antifascista
pode ser problemática. Para além da já referida inconsistência teórica, é de se
perguntar se as amplas maiorias saberão sequer o que significa o termo fascismo.
Por outro lado, e mais importante, uma frente popular democrática deveria se
evidenciar como alternativa – positiva e construtiva – e não apenas se formar
na base do anti, eis que tais frentes – negativas – tendem a perder o
essencial: de que democracia se está falando, que democracia é preciso
construir[41].
Entretanto,
é preciso ir além de defender apenas as margens democráticas existentes –
restritas e limitadas. Neste sentido, cabe às esquerdas democráticas – de
estado e sociais - se reinventarem e se reaproximarem: a prioridade é investir na ativação dos movimentos de rua,
recuperando musculatura no tecido social, reconstruindo forças de que já
dispuseram, mas as perderam, e sem as quais não
conseguirão retornar ao proscênio, hoje ocupado pela extrema-direita e pelas
direitas e centro democráticos.
Num
plano mais geral, as esquerdas democráticas precisam formular um programa de democratização
da democracia, uma condição indispensável para que as gentes tornem a se
interessar – e a proteger, no limite, a se dispor a salvar – o regime
democrático ameaçado.
Um
conjunto complexo de desafios. Que sejam capazes de suscitar, como sugeriu Zizek
(2017), a coragem da desesperança. Deste tipo de coragem é que dependerá
a sorte da democracia no Brasil.
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Recibido:
25 de Agosto de 2020
Aceptado:
3 de Septiembre de 2020
Versión
Final: 2 de Octubre de 2020
[1] O presente texto retoma, amplia e redefine questões e temas
considerados em outro artigo, intitulado: “Notas para a compreensão do Bolsonarismo”, publicado em abril de 2020, in: Revista de Estudos
Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da
Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
PUC/RGS, Brasil (Cf. D. Aarão Reis, 2020)
[2] Para o debate sobre a díade
direita-esquerda e suas manifestações extremas, cf. Bobbio (1995) e Soper (1999).
[3] Muitos preferem chamá-la de populismo
de direita (Torney, 2019)
[4] As propostas nacionalistas
autoritárias podem assumir feições diversas das manifestações de
extrema-direita. É o caso dos governos da Rússia e da China, entre outros. Em
certa medida, as propostas e regimes autoritários e as propostas de
extrema-direita retroalimentam-se.
[5] Lideranças políticas e estudiosos têm
caracterizado este processo como de ressurgência do fascismo. O debate sobre a
questão será desenvolvido no ítem 3 deste artigo.
[6] Cf. Roberto Da Matta, crônica
publicada em O Globo, 10 de junho de
2020, p. 3.
[7] Entre 1937 e 1945, a ditadura do
Estado Novo, liderada por G. Vargas; entre 1964 e 1979, a ditadura
civil-militar, presidida por cinco sucessivos generais.
[8] Entre outros, mencionaria Daniel Aarão
Reis, Rodrigo Patto Sá Motta e Marcelo Ridenti (2014); Rodrigo Patto Sá Motta (2014);
Denise Rollemberg (2008, 2010, 2010a); Lucia Grinberg (2009); Janaína Cordeiro
(2015); Gustavo Ferreira (2015); Tatyana Maia (2012); Paulo Cesar Gomes (2019);
Lívia Magalhães (2014).
[9] Nos anos 1970, tornou-se comum
analisar as ditaduras latino-americanas como expressão imediata das tradições
ibéricas. O conceito esfumou-se com os processos de democratização que se
realizaram na... península ibérica, (Linz e A. Stepan, 1978; Linz, 2000)
[10] Na aspiração por tempos melhores, os
brasileiros tendem a usar – e a abusar do – o adjetivo novo para
designar mudanças que superariam mazelas do passado. A chamada nova
república evidencia a reiteração do recurso, embora em sua estrutura e
dinâmica fossem visíveis as marcas do velho, de continuação com o passado.
[11] Na interpretação de petistas, de
lulistas e de outros agrupamentos de esquerda, o impeachment de Dilma
Rousseff foi um golpe
de estado parlamentar, camuflado, efetuado por dentro das próprias instituições
democráticas. Curioso é que estas forças, desde 1988, recorreram diversas vezes
ao impeachment, sem que o mecanismo,
essencialmente autoritário, lhes parecesse
questionável.
[12] O PT foi fundado em 10 de fevereiro de
1980, na esteira de grandes movimentos sociais; e o PSDB surgiu no âmbito dos
trabalhos de elaboração da nova Constituição, em 25 de junho de 1988.
[13] A Comissão Nacional da Verdade,
organizada em 18 de novembro de 2011, mais de trinta anos depois do fim da
ditadura, até realizou um trabalho positivo, mas não conseguiu, talvez porque
veio tarde demais, alterar o quadro de silêncio social sobre os crimes e
legados da ditadura.
[14] A esperança em salvadores da pátria
tem larga tradição no país. Getúlio
Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor, o próprio Lula, cada um a seu modo,
todos se inscreveram neste registro de alternativas salvadoras a um
sistema execrado.
[15] Cf. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/04/pesquisa-datafolha-para-presidente-bolsonaro-35-haddad-22-ciro-11-alckmin-8-marina-4.ghtml
Consultado
em 24 de junho de 2020. As eleições presidenciais realizaram-se em dois turnos:
7 e 28 de outubro de 2018.
[16] A Lei n° 135, de 5 de maio de 2010,
conhecida como Lei da Ficha Limpa, proíbe a candidatura de políticos condenados
em segunda instância. A ironia é que foi promulgada pelo próprio Lula, quando
no exercício de seu segundo mandato.
[17] Desde 1994, em seis sucessivas
eleições presidenciais, os dois candidatos mais votados foram apresentados pelo
PSDB e pelo PT.
[18] Desde 1992, em sete mandatos
sucessivos, Jair Bolsonaro elegeu-se à Câmara de Deputados, defendendo
interesses corporativistas das forças armadas e policiais e enfatizando a
defesa do regime ditatorial.
[19] O juiz projetou-se como campeão
nacional da defesa da moralidade. em virtude de seu protagonismo nos processos
que desvendaram casos espetaculares de corrupção e acabaram levando à cadeia,
entre muitos outros, o próprio ex-presidente Lula.
[20] O censo nacional, realizado em 2000,
apurou a existência de 26,2 milhões de pessoas que se autodeclaravam
evangélicas, equivalentes a 15,4% da população. Em 2010, o número saltou para
42,3 milhões, 22% da população. O IBGE calculou então que existiriam 14 mil
igrejas evangélicas. Consultado em https://www.google.com/search?q=propor%C3%A7%C3%A3o+das+igrejas+evangelicas+no+brasil&oq=propor%C3%A7%C3%A3o+das+igrejas+evangelicas+no+brasil&aqs=chrome..69i57j33.12849j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8
[21] Bolsonaro teve participação pífia nos
debates anteriores ao atentado, que o salvou de novos debates, preservando-o de
inevitáveis desgastes.
[22] Os diplomas legais emitidos no quadro
do estado de exceção instaurado em 1964 foram nomeados pelos próprios autores
como atos institucionais ou atos complementares. Foram 17 atos
institucionais e 104 atos complementares. O mais drástico e violento foi o
AI-5.
[23] Não seria razoável afirmar que todos
os referidos oficiais sejam partidários de Bolsonaro, mas é inegável que, no
seu conjunto, eles constituem importante base de sustentação do atual
presidente.
[24] Cf. Bolsonaro e o mundo armado no
Brasil. Debate entre Luiz Eduardo Soares e Piero Lerner: https://youtu.be/IKbCnZ4IN44. Cf. igualmente J.C. de C. Rocha (2020).
[25] O assassinato da vereadora Marielle
Franco, do PSOL-RJ, perpetrado em 14 de março de 2018, foi obra de
milicianos.
[26] Entre elas, destacam-se mesmo algumas
lideranças que estão no campo das esquerdas. Por outro lado, o voto evangélico
pode evoluir segundo as conjunturas, não sendo os fiéis meros carneiros
nas mãos de seus pastores. Cf. B.A. Cowan, 2014. Tem crescido a
literatura a respeito dos evangélicos, na proporção da importância dos mesmos
na sociedade e na política do país. Cf., entre outros, citados pelo autor
referido: S. Baptista (2009) e M.N. Cunha (2007).
[27] Cf. nota 19
[28] Jair Bolsonaro elegeu-se pelo Partido
Social Liberal/PSL, pequeno partido sem relevância, mas que se projetou com sua
vitória, elegendo a maior bancada da Câmara de Deputados, em 2018. Logo depois,
contudo, o Presidente eleito desentendeu-se com os dirigentes do Partido,
afastou-se do mesmo, levando consigo cerca de metade da bancada e, agora,
encontra-se envolvido na formação de uma novo Partido, o Aliança para o Brasil.
[29] Observe-se que o auxílio, de R$600,00
por mês, previsto para durar 3 meses, foi proposto pelo governo em apenas R$
200,00. Nos debates no Congresso, aumentou para R$500,00 sendo, mais tarde,
fixado em R$600,00 pelo próprio Bolsonaro. As pesquisas mostram, contudo, que o
auxílio tem sido atribuído à Bolsonaro por amplas maiorias. Recentemente, o
presidente anunciou a continuidade do auxílio, por mais três meses, em quantias
decrescentes.
[30] Considere-se que muitas forças
políticas caracterizaram a ditadura instaurada em 1964, e também o Estado Novo,
como fascistas. Foi mais um recurso de luta política do que um conceito
adequado. Com o tempo, tais denominações perderam vigência.
[31] Para o movimento integralista, cf. H.
Trindade (1979) e L. Gonçalves (2018). A presença de núcleos nostálgicos do
fascismo e do nazismo no interior da reação nacionalista de extrema-direita tem
levado muitos a apresentar este fenômeno novo e específico como uma
ressurgência do fascismo/nazismo dos anos 1930.
Foi o que tendeu a acontecer também no Brasil, em particular após o
ascenso fulminante da extrema-direita. Para a especificidade do fascismo, que
dispõe de abundante bibliografia, cf. Emilio Gentile (2005), sobretudo a II
Parte (pp. 169-375) e Robert Paxton (2007), em particular os capítulos 7 e 8
(pp 283-361). Para uma síntese da especificidade do fascismo, segundo Paxton,
cf. pp 358-361. Cf. ainda os estudos clássicos de Renzo Felice (1977) e Zeev
Sternhell (1994). Para o corporativismo estatal, doutrina inspiradora do Estado
Novo cf. Antonio Costa Pinto (2014). Para a vasta literatura sobre o nazismo,
cf. N. Poulantzas (1978), que também considera o nazismo; I. Kershaw (2010;
2015) e R. Gelatelly (2011).
[32] Ressalvem-se interpretações que
atribuem ao fascismo uma acepção mais ampla, mais elástica, enfatizando-se não
propriamente a experiência histórica, mas um complexo de valores autoritários e
intolerantes. Cf. U. Eco (1995).
[33] Pesquisas realizadas entre 7 e 10 de
maio de 2020 indicaram o crescimento da rejeição ao governo, alcançando patamar
de 43,4% (governo ruim ou péssimo). Já os índices de aprovação caíram para 32%.
Cf. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/12/cntmda-avaliacao-negativa-de-governo-bolsonaro-chega-a-434.htm, consultado em 26 de junho de 2020.
Tais resultados foram confirmados em novas pesquisas, publicadas em 26 de junho
de 2020.
[34] Observe-se que V. Orbán foi um dos
poucos líderes internacionais a comparecer pessoalmente à posse de Bolsonaro,
em janeiro de 2019.
[35] Elio Gaspari, em sua coluna no Globo, de 10 de junho de 2020, p.
3, registrou reflexões de lideranças
políticas (Joice Hasselmann, ex-líder do PSL,
partido do governo na Câmara de Deputados) e intelectuais (José Arthur
Giannotti e Denis Lerner Rosenfeld) de direita, que, embora eleitores de
Bolsonaro, manifestavam alarme com seus procedimentos autoritários,
classificados como chavismo de direita.
[36] Para a caracterização da paranoia de
Bolsonaro e de alguns de seus auxiliares, cf. a transcrição da reunião
realizada pelo conselho de ministros, presidida pelo próprio Bolsonaro, em 22
de abril de 2020: http://estaticog1.globo.com/2020/05/22/laudo_digitalizado.pdf
Filmada e
gravada, o conteúdo da reunião foi divulgado por decisão da Justiça,
mostrando-se Bolsonaro e vários de seus correligionários tomados por um delírio
de cerco muito típico das pessoas paranoicas (perseguem, mas se sentem
perseguidas). Escrevi a propósito uma crônica: Um governo em cuecas, publicada
em 13 de junho de 2020, em O Globo,
p. 3. Paulo Sternick, psicanalista, em 21 de junho, no mesmo jornal, p. 3,
consideraria a pulsão de morte do Presidente.
[37] Fábricio Queiroz foi preso em 25 de
junho pela polícia civil do Estado de São Paulo. A. Weintraub foi demitido no
dia seguinte, 26 de junho. O impacto nas mídias sociais de extrema-direita,
sempre muito ativas, foi flagrado por David Nemer, da Universidade de Virgínia,
que registrou, no dia seguinte à prisão de Fabrício Queiroz, uma queda brusca
de 48% no movimento destas mídias. Cf. O
Globo, 16 de junho, p. 8.
[38] Além do núcleo de algo em torno de 30%
que permanecem fiéis a Bolsonaro, recorde-se a força capilar – e popular – dos
evangélicos e mais o crescimento possível como resultado de políticas
assistencialistas como o já anunciado programa Renda Brasil, entre
outras iniciativas possíveis.
[39] Cf. intervenção de Carlos Vainer na
emissão Rebeldes, sempre, em três partes, a partir dos seguintes links: https://youtu.be/qXH0-HddWs0; https://youtu.be/CjqIGm7EwaY; https://youtu.be/24BejEGfwmQ
[40] Alcançaram grande repercussão,
manifestos assinados por intelectuais de esquerda e do centro e direitas
democráticos: “Estamos juntos”; “Basta” (juristas); “Somos 70%” e “Enquanto
houver racismo, não haverá democracia”.
[41] Cabe assinalar, contudo, que diversas
manifestações e articulações populares têm se autoidentificado como antifascistas.
Assim, não é de se excluir a hipótese que esta terminologia se afirme e se
generalize.