A extrema-direita brasileira: uma concepção política autoritária em formação [1]

 

 

La extrema derecha brasileña: una concepción política autoritaria en formación

 

 

 

Daniel Aarão Reis

Universidade Federal Fluminense (Brasil)

daniel.aaraoreis@gmail.com

 

 

RESUMO

A vitória de Jair Bolsonaro em novembro de 2018 nas eleições que o alçaram à presidência da República no Brasil surpreendeu e criou um estado de perplexidade, próximo da catatonia, sobretudo no campo das esquerdas, mas também entre forças de centro e das direitas democráticas. Tornou-se urgente compreender a densidade histórica e o significado político do fenômeno que nos interpela com a frase da Esfinge: “decifra-me ou te devoro”.

O presente artigo tenta contribuir neste sentido e está articulado nas seguintes sessões: 1. Contexto internacional da ascensão das extremas-direitas; 2. A ascensão da extrema-direita no Brasil; 3. O caráter da extrema-direita brasileira; 4. A construção de alternativas democráticas. Palabras clave: Teoría de la historia; verdad histórica; estética.

 

Palavras-Chave: extrema-direita; brasileira; política autoritaria; formación

 

RESUMEN

 

La victoria de Jair Bolsonaro en noviembre de 2018 en las elecciones que lo elevaron a la presidencia de la República en Brasil sorprendió y creó un estado de perplejidad, cercano a la catatonía, especialmente en el campo de la izquierda, pero también entre fuerzas del centro y derecha democráticos. Lo que tornó urgente comprender la densidad histórica y el significado político del fenómeno que nos desafía con la frase de la Esfinge: “descíframe o te devoro”.

El presente artículo intenta aportar en este sentido y se articula en los siguientes apartados: 1. Contexto internacional del surgimiento de las extremas derechas; 2. El ascenso de la extrema derecha en Brasil; 3. El carácter de la extrema derecha brasileña; 4. La construcción de alternativas democráticas.

 

Palabras Clave: La extrema derecha; brasileña; política autoritaria; formación

 

 

 

1. O contexto internacional da ascensão das extremas-direitas [2]

O crescimento político de forças e partidos de extrema-direita e de diversos tipos de regimes autoritários é uma tendência mundial a partir de fins do século passado e inícios do presente século.

No cerne deste processo encontra-se o que se convencionou chamar de revolução digital ou informática que tem mudado radicalmente os padrões civilizatórios da inteira humanidade. À semelhança da chamada civilização fordista que, em fins do século XIX e inícios do século XX, revolucionou em profundidade as sociedades humanas, a civilização da informação, produto da atual revolução, têm igualmente produzido efeitos sociais, políticos, culturais e econômicos profundamente desestabilizadores e transformadores.

No quadro desta nova revolução, destacam-se alguns aspectos principais no campo da economia e da sociedade: a consolidação da hegemonia do capital financeiro, com ênfase para os capitais especulativos, protegidos por legislações favoráveis, incluindo-se aí os chamados paraísos fiscais; o enfraquecimento drástico das legislações que regiam os movimentos nacionais e internacionais de capitais e mercadorias; a privatização de setores econômicos e serviços públicos, mesmo dos que eram até então considerados estratégicos à segurança pública e nacional; a fragilização correspondente da capacidade de intervenção e regulamentação dos Estados Nacionais; o surgimento de novos setores/atividades dinâmicos, como, entre outros,  a informática, a biotecnologia, a robótica, a inteligência artificial, de alto nível de monopolização ou oligopolização, com impactos radicais na área das comunicações (internet, mídias sociais, etc.); a realocação internacional da produção industrial mundial e o declínio acelerado do peso demográfico das classes operárias nos países capitalistas mais poderosos; a desarticulação e a precarização dos mercados de trabalho (uberização) e das instituições sindicais tradicionais; o surgimento de novos polos de desenvolvimento (Índia, China) e de megamercados regionais, alterando o equilíbrio instaurado no pós-II Guerra Mundial; finalmente, mas não menos importante, o aprofundamento acelerado das desigualdades sociais e econômicas (Piketti, 2014).

Os regimes de democracia representativa têm evidenciado notável incapacidade para lidar com os desafios decorrentes deste conjunto de mutações. As instituições políticas e jurídicas apresentam-se desconectadas das demandas sociais e os partidos e sindicatos perdem prestígio e capacidade de articulação e de mobilização. Entre os jovens e as classes populares acentua-se o desinteresse em relação aos processos eleitorais e a desconfiança em relação a um sistema político criticado como ineficaz, corrupto e desmoralizado (Levitsky e Ziblatt, 2018; Runciman, 2018). A rigor, trata-se de um processo em curso desde os anos 1960/1970, a partir de quando emergem, cada vez mais, como protagonistas das lutas políticas, movimentos sociais que não se deixam enquadrar pelos jogos institucionais ou/e eleitorais (Aarão Reis, 2018).

Instaura-se um pouco por toda a parte uma sociedade da insegurança (Fraser, 2007). Os que perdem posições ou não conseguem mantê-las, as grandes massas de assalariados ou dos que vivem do próprio trabalho, sentem-se amedrontados. As referências culturais que pareciam sólidas desmancham no ar. Ações terroristas, desde 2001 (Ash, 2011); crises  econômicas e catástrofes naturais acentuam uma atmosfera de incertezas e desorientação.

As forças e os partidos políticos reformistas, democráticos ou socialistas não têm conseguido apresentar propostas que protejam os interesses das camadas populares e controlem ou atenuem os efeitos desestabilizadores destas tendências. São identificados, com ou sem razão, como sócios de regimes incapazes de defender as grandes maiorias, o que se tornou particularmente evidente no enfrentamento da crise econômica de 2008, quando o custo de superação de seus efeitos desabou quase que exclusivamente nas costas dos trabalhadores assalariados (Przeworski, 2019).

É neste quadro geral de desespero e desesperança que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias, num processo de reação nacionalista[3], quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita[4].

O fenômeno Donald Trump nos Estados Unidos, o crescimento das forças de extrema-direita na Europa Ocidental (Itália, França e Inglaterra) e Central (Hungria e Polônia), na Ásia (Índia e Filipinas) e na América Latina (Chile, Colômbia e Brasil) atestam a crescente existência deste processo. Uma de suas principais particularidades é que tais forças não se confrontam abertamente com as instituições democráticas, mas as instrumentalizam, corroendo-as por dentro, desfigurando-as. Combinam eficazmente o recurso às ruas e o uso intenso das chamadas mídias sociais no quadro de opções nacionalistas, antidemocráticas e conservadoras do ponto de vista social e religioso[5].

 

2. A ascensão da extrema-direita no Brasil

A vitória de Jair Bolsonaro insere-se neste quadro internacional. É a expressão brasileira destas tendências.

Para compreendê-la, uma vez contextualizada no plano internacional, tenho proposto a articulação de três temporalidades: na longa duração, o estudo das tradições autoritárias no país; na média duração, a deterioração do sistema político entre a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições de 2018; na curta duração, a incidência da campanha eleitoral e seus efeitos.

 

2.1. As tradições autoritárias: a longa duração

São densas e pesadas as tradições autoritárias no Brasil. Entre outras, destacam-se:

- O racismo. Antes de serem tardiamente abolidas, as relações escravistas disseminaram-se por toda a sociedade (escravismo doméstico ou de proximidade), gerando desprezo pelo trabalho manual e relações hierárquicas mantidas pela violência. O processo peculiar de miscigenação, apresentado como antídoto à discriminação racial, apenas disfarçou formas onipresentes de racismo, evidenciadas em inúmeras evidências: desigualdades de emprego e de renda; violência policial; população carcerária, etc.;

- As desigualdades sociais. Apesar do considerável progresso econômico, registrado em particular entre 1930 e 1980, mantiveram-se e reproduziram-se padrões brutais de desigualdades regionais e sociais, configurando amplas maiorias como sub-cidadãos, ou cidadãos de segunda classe, cujos direitos – proclamados em leis e mesmo em constituições – não se concretizaram na prática social;

- O patrimonialismo e o mandonismo. Fundamentos das relações sociais agrárias que se ancoram no tempo colonial, conservaram grande força. Em artigo recente, o antropólogo Roberto Da Matta, estudioso desta e de outras tradições, referiu-se “ao colonialismo autoritário e burocrático, radicalmente católico e anti-igualitário”, combinado a laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro”[6]. O processo de crescimento industrial e urbano não dissolveu sua força e incidência, nem a República, proclamada em 1889, foi capaz de neutralizar seus efeitos. O acesso limitado à plena cidadania – apesar do que dizem os textos legais – reproduz a preeminência das relações pessoais em detrimento de códigos legais impessoais;

- A discriminação de gênero. Os avanços no sentido da emancipação da mulher são muito recentes, datando dos anos 1970. As desigualdades profissionais e de renda, o limitado acesso aos níveis mais altos de prestígio social e de remuneração, a criminalização da interrupção voluntária da gravidez, os índices de violência doméstica e estupro, atestam a subordinação violenta da “segunda metade do céu”;

- O raquitismo democrático. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada das liberdades democráticas, os principais saltos econômicos registrados sob dominação de regimes ditatoriais (1937/1945 e 1964/1979), tudo disso deixou marcas profundas nas tendências políticas de direita e de esquerda. O reconhecimento de amplas liberdades democráticas, envolvendo direitos civis, políticos e sociais é muito recente, datando dos últimos anos do século XX (Constituição de 1988).

A combinação destes aspectos na longa duração estruturou uma sociedade marcada pela desigualdade, hierarquia, violência, intolerância e discriminações (Schwarcz, 2019; Starling, 2019).

Sem embargo, foi notável como amplos círculos – políticos e intelectuais – tenderam a subestimar a força destas tradições em passado recente e a apresentar a democracia brasileira como “consolidada”. Um caso típico de cegueira política e histórica.

Nunca foi tão urgente como hoje superar este equívoco.

Tenho me empenhado em fazê-lo desde os primeiros anos deste século, chamando atenção para as “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, (ressalvado o papel fundamental desta última), mas contaram com apoios transversais em todos os níveis da sociedade. Efetivamente, em torno dos dois regimes ditatoriais que se impuseram no país no século XX (1937-1945; 1964-1979[7]), foi possível construir não raro um consenso social significativo, o que oferece subsídios para a compreensão da instauração quase pacífica de ambos e dos processos também pacíficos de sua superação. Importantes pesquisas têm demonstrado a adequação desta interpretação[8].

Considerar as tradições autoritárias para compreender a atual ascensão da extrema-direita não deve conduzir, porém, à sua absolutização[9]. Apesar destas tradições, maiorias expressivas elegeram à presidência da república o sociólogo de centro-esquerda Fernando Henrique Cardoso (1994/2002), o líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva (2002/2010) e Dilma Rousseff (2010/2016), ex-militante da luta contra a ditadura. Em outras palavras: as tradições autoritárias condicionam opções, mas não as determinam exaustivamente. Como gostava de dizer o intelectual israelense, Amoz Oz: “o passado nos pertence, não pertencemos ao passado”. As tradições, embora poderosas, não podem expulsar a política da história. A longa duração não exclui a avaliação da média e curta durações. Cumpre agora analisar estas últimas.

 

2.2. A média duração: a grande conjuntura 1988/2018

Tornou-se comum denominar o período que se inaugurou com a aprovação da Constituição de 1988 como nova república[10]. Segundo os adeptos da denominação, ela teria entrado em crise com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e sido definitivamente enterrada com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018[11] (Alonso, 2019; Solano, 2019).

Aceite-se ou não a periodização, o fato é que a grande conjuntura entre 1988 e 2018 oferece uma plataforma interessante para avaliar as circunstâncias e as opções que levaram à perda radical do prestígio de um sistema político que parecia tão promissor em fins do século XX. Trata-se de uma reflexão importante, eis que a vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro está intimamente vinculada à desmoralização da sistema político atual.

Entre outros aspectos, o que marca a trajetória da nova república do ponto de vista político é a preeminência da polarização entre o Partido da Social-Democracia Brasileira/PSDB e o Partido dos Trabalhadores/PT[12]. Inquestionavelmente, os dois partidos encarnaram as aspirações reformistas no sentido da construção de uma sociedade democrática e menos desigual.

A visibilidade, o prestígio e o poder adquiridos por eles corresponderam a políticas de defesa dos interesses das grandes maiorias. Entre muitas outras, o controle da inflação, empreendido nos anos de governo do PSDB, com impacto na redução das desigualdades sociais e, com até muito maior impacto, as políticas de distribuição de renda e as chamadas afirmativas contra o racismo, implementadas nos anos de governo do PT, em particular nos mandatos de Lula (2002/2010). Entretanto, o ímpeto reformista dos dois partidos foi se arrefecendo, configurando-se, em ambos os casos, um reformismo mole (Singer, 2012). Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras do século XX (Aarão Reis, 2019a). O inventário das cicatrizes deixadas pela ditadura deixou de ser feito, com evidente prejuízo para a consciência cidadã[13]. 

Ao perderem as eleições para o PT, em 2002, o PSDB e seu líder, Fernando Henrique Cardoso, já registravam um considerável desgaste. Alianças consideradas sem princípios com partidos e grupos notoriamente conservadores e corruptos haviam corroído sua aura reformista e inovadora. Nada, no entanto, que ameaçasse sua posição de polo insubstituível nas lutas políticas institucionais.

Quanto ao PT, já no primeiro governo de Lula, escândalos de corrupção, como o do chamado mensalão (junho, 2005), começaram também a abalar o prestígio e a colocar em dúvida os compromissos e a vocação reformista do partido e do presidente. Entretanto, as dúvidas pareceram superadas com a reeleição de Lula (2006), e ao longo do segundo mandato (2006/2010), quando o país viveu momentos de intensa euforia social e política, o que se confirmaria com a eleição de Dilma Rousseff (2010). A nova república parecia segura e não poucos celebravam a consolidação da democracia no Brasil, chancelada internacionalmente com a aprovação do país como sede da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas de Verão (2016).

A partir de 2010, no entanto, começaram a se fazer sentir os impactos da grande crise econômica mundial de 2008, muito subestimados e por isso mesmo mal atenuados ou controlados. Num quadro de agravamento das contradições, demandas sociais começaram a explodir em vários níveis: por emprego; por serviços públicos de qualidade; por políticas de combate à corrupção, cuja existência tornou-se assunto nacional a partir de sucessivos escândalos envolvendo empresários e políticos; por políticas positivas em relação à segurança que, nas cidades, se tornava uma questão maior para todas as classes sociais.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas.

Entretanto, face a este conjunto de desafios, PT e PSDB mostraram-se incapazes de oferecer propostas construtivas e credíveis. Enredados em suas querelas e jogos de poder, perdida sua vocação reformista original, era como se estivessem distanciados da sociedade, sem nexo com os problemas que atormentavam as pessoas comuns.  Começou a brotar a ideia de que o sistema político já não funcionava a contento. Falido? Alguns começavam a dizer que estava podre.

Foi numa atmosfera de exasperação de contradições, condições propícias para a emergência de lideranças salvacionistas, outsiders supostos ou reais, que se abriu o ano eleitoral de 2018[14]. Ainda não estavam, porém, jogados todos os dados que ensejariam a vitória de Jair Bolsonaro.

Eles seriam jogados na campanha eleitoral, na curta duração. Daí porque ser tão importante analisar esta temporalidade. Em caso contrário, como já se disse, a política será expulsa da história.

 

2.3. A campanha eleitoral de 2018: a curta duração

A análise da campanha eleitoral, na temporalidade da curta duração, é indispensável para a compreensão da ascensão da extrema-direita ao governo pelo voto.

Em pesquisas realizadas em 22 de agosto, menos de dois meses antes do primeiro turno, Bolsonaro ainda se mantinha em 22% das intenções de voto, e poucos acreditavam que fosse capaz de alcançar patamares muito mais altos. Daí a quase três semanas, em 10 de setembro, ele ganhara apenas mais 2 pontos, chegando a 24% das intenções de voto[15]. Em outras palavras, apesar das tradições autoritárias e do desgaste do sistema político, não havia ainda certeza, muito pelo contrário, a respeito do sucesso da candidatura salvacionista de extrema-direita.

Que circunstâncias e opções conduziram à sua vitória?

De um lado, as esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais. Além disso, o PT recusou-se a avaliar a onda de fundo antipetista que permeava a sociedade, muito forte entre as classes médias, mas alcançando também camadas populares. Descartou assim a hipótese de apoiar um candidato de outro partido.  E manteve durante longo e precioso tempo, em movimento suicida, a (anti) candidatura de Lula, ilegal na medida que ele fora condenado em segunda instância[16]. Quando o partido, finalmente, resolveu apoiar formalmente a candidatura do ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, o fez com ressalvas, apresentando-o como se fosse um peão de Lula. Tolhido pelos erros e inconsequências do PT e de Lula que sempre se recusaram a produzir qualquer tipo de autocrítica, Haddad não conseguiu  apresentar propostas para neutralizar ou conter a corrupção em larga escala e a insegurança nas grandes cidades, dois grandes temas da campanha eleitoral, explorados de forma tosca, mas eficaz, pelo candidato de extrema-direita. Entre os dois turnos, Haddad recuperou terreno, cultivou personalidade própria, formulando propostas objetivas e convincentes, mas já não houve tempo político para reverter os resultados desfavoráveis.

Cumpre destacar o fracasso da candidatura de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo e um dos líderes mais importantes do PSDB. Montando poderosa frente partidária, dispondo de vultosos recursos financeiros, agrupou muitas forças de centro e das direitas democráticas. Imaginava-se que a disputa tenderia a ser, mais uma vez, entre ele e o candidato do PT[17]. No entanto, em amplos contingentes do eleitorado, prevaleceu a percepção de que, para derrotar o PT, Bolsonaro reunia melhores condições do que Alckmin. Houve, assim, nas três últimas semanas da campanha, um trânsito maciço de votos para o candidato da extrema-direita, garantindo sua vitória.

O vitorioso não se beneficiou apenas dos erros adversários. A partir de suas bases mais radicais, nas forças armadas e policiais[18],  soube construir alianças surpreendentes e diversificadas. Escolheu como seu ministro da economia, um empresário da especulação financeira que lhe abriu as portas para uma aliança com os capitais financeiros. No campo da economia também estruturou apoios entre os empresários vinculados à exportação de produtos agrícolas, o chamado agronegócio, e com garimpeiros e madeireiros comprometidos com a devastação das florestas e com a abertura de fronteiras agrícolas.  Definindo o juiz Sergio Moro como ministro da Justiça, ganhou a confiança de todos os que consideravam a corrupção e a segurança grandes problemas nacionais[19]. Explorando uma pauta conservadora do ponto de vista dos costumes, teceu laços com as igrejas evangélicas, com crescente força no país[20]. Tais alianças seriam potencializadas pelas bancadas parlamentares ruralistas, armamentistas e religiosas, ditas BBB (do boi, da bala e da bíblia), conformando apoios eficazes na campanha eleitoral.

Restaria ainda mencionar duas importantes referências: o atentado sofrido por Bolsonaro, em 6 de setembro de 2018, que lhe permitiu afastar-se dos debates onde suas performances o desfavoreciam[21] e a organização e intensa exploração  de uma sofisticada rede de comunicações, acionando de modo profissional as chamadas mídias sociais, seja para divulgar propaganda positiva, seja para disseminar falsas informações (fake news).

Combinaram-se, assim, como sempre, erros (dos adversários) e acertos que beneficiaram o candidato vitorioso.

Acredito que a elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral, na curta duração.

Cumpre agora discutir melhor o caráter desta vitória e do governo liderado por Jair Bolsonaro desde 1° de janeiro de 2019.

 

 

3. O caráter da extrema-direita brasileira 

A surpreendente vitória de Jair Bolsonaro, como já referido, suscitou um clima de grande perplexidade. Como é usual, as primeiras explicações e interpretações procuraram no passado paralelos ou fontes para entender o fenômeno.

Alguns afirmaram que o Brasil teria voltado aos anos 1960 e estaria na iminência de um golpe de estado, como o que se verificou em 1964. Outros preferiram ver semelhanças com a conjuntura que levou à promulgação do Ato Institucional n° 5, editado em dezembro de 1968, que radicalizou a ditadura então existente[22]. Numa incursão a um passado mais distante, foram invocadas as experiências do movimento integralista brasileiro nos anos 1930, da ditadura do Estado Novo e, num plano mais geral, formularam-se associações – controvertidas – com o fascismo italiano e mesmo com o nazismo alemão, como se verá adiante. 

Tais interpretações merecem discussão. Entretanto, como estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita constitui um movimento original, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação.

Conforme esboçado na análise da campanha eleitoral a vitória de Jair Bolsonaro deveu-se à articulação de uma frente heterogênea que pode ser apresentada em forma de círculos, hierarquizáveis de acordo com a fidelidade a Bolsonaro.

Um primeiro círculo – núcleo forte e bastião do pensamento da extrema-direita – é constituído pelos oficiais das forças armadas, em particular do exército, mais os oficiais e suboficiais das Polícias Militares, da ativa e da reserva[23]. Jair Bolsonaro, através de longa carreira parlamentar, projetou-se não apenas como representante dos interesses corporativos destas gentes, mas também como um dos únicos políticos, e com grande audácia, a resgatar em chave positiva a experiência da ditadura, inclusive seus métodos violentos de torturar e matar adversários. A pauta da defesa dos costumes conservadores é uma outra importante referência a fidelizar estas bases a Bolsonaro, pois, em comum, cultivam o conceito de guerra cultural ou guerra híbrida, a ser travada contra os agentes – instituições e partidos – acusados de promover a destruição das tradições, da moral estabelecida, dos bons costumes e das tradições políticas e éticas da nação. Ingredientes importantes nesta perspectiva são as críticas ao globalismo, ao enfraquecimento dos estados e culturas nacionais, e aos novos métodos – encobertos e camuflados – através dos quais operariam novas e velhas esquerdas em sua luta permanente pelo controle da sociedade e do poder. Tais referências não podem ser nem exclusivamente nem principalmente atribuídas a Olavo de Carvalho, pseudo-intelectual cujas manifestações caricaturais não deveriam servir para encobrir núcleos de formulação mais consistentes, que elaboram tais ideias há muitos anos no interior das, e protegidos por, estruturas institucionais das forças armadas. Foi no interior do estado maior do Exército que se formou uma equipe, ainda nos anos 1980, devidamente autorizada pelo ministro da arma, general Leonidas Gonçalves,  que formulou volumoso livro,  com um resgaste da ditadura em chave positiva, enfatizando-se o papel dos militares como tutores da república e as sucessivas ameaças empreendidas pelas esquerdas no sentido da dissolução da nacionalidade brasileira. O texto, intitulado Orvil (anagrama de livro) só foi publicado mais tarde (Maciel e do Nascimento,  2012), mas se constituiu, desde então, numa referência para a extrema-direita militar e civil.[24].  

Um segundo círculo, não menos importante, é constituído por setores populares de classe média, alguns com afinidades profissionais (pequenos empreendedores, caminhoneiros, taxistas, etc.). Acionam as novas mídias sociais (whatsapp, facebook, twitter, youtube, blogs, etc.), financiadas por empresários bolsonaristas. Os valores compartilhados de extrema-direita compreendem, entre outros, o recurso à violência para matar criminosos comuns, o conservadorismo social, o ódio às lutas identitárias, etc. Têm sido importantes nas ações de ruas e na intimidação de adversários, mas seus níveis internos de organização ainda são precários. Neste segundo círculo também poderiam ser incluídos as milícias. Constituídas por ex-integrantes das polícias militares, além de criminosos comuns, elas vêm ganhando força ao longo do atual século em algumas grandes cidades. Disputam espaço com facções de criminosos comuns no controle de atividades ilegais e semilegais e extorquem comunidades de diversos tipos, periféricas às grandes cidades, vendendo proteção em troca de segurança. A despeito de sua autonomia enquanto organizações criminosas, aparecem como um potencial e temível braço armado, eventualmente disponível para aterrorizar e matar adversários[25].

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro[26]. Destaca-se também aí a pauta dos costumes. De modo geral, os evangélicos acreditam nos valores do trabalho, do ascetismo, do esforço próprio, da ajuda mútua e abominam as lutas identitárias, o consumo de drogas e a revolução comportamental que é um aspecto das transformações civilizacionais em curso. Apoiadas em crescente adesão social[27], fortes bancadas parlamentares (a bancada da Bíblia) e poderosos meios de comunicação, tornaram-se uma respeitável força política no país. Podem desempenhar papel importante na viabilização de um novo partido político bolsonarista, o Aliança para o Brasil, ainda em formação[28]. Mas seria um equívoco imaginar que seriam dóceis aliados, pois há contradições entre os valores cultivados pelos evangélicos e determinados aspectos do credo bolsonarista, como o recurso à violência (bandido bom é bandido morto) e a conciliação consequente com as milícias, rejeitadas pelos evangélicos, e a liberação dos jogos de azar, que eles execram. 

Num quarto círculo, encontram-se vastos setores das classes médias afluentes (profissionais liberais, assalariados de padrão mais alto, etc.), principalmente no sul e sudeste do país. Desorganizadas, unificaram-se em torno de Bolsonaro menos pelo compartilhamento de valores ideológicos e mais pela luta contra a corrupção e o antipetismo. A nomeação do Juiz Sergio Moro para o cargo de Ministro da Justiça consagrou a adesão destas camadas sociais a Bolsonaro, mas sua recente demissão, em 24 de abril passado, e suas denúncias contra a conciliação de Bolsonaro com a corrupção, abalaram a confiança destas bases, registrada nos índices de confiança aferidos por diversas pesquisas.

Num quinto círculo, finalmente, encontram-se setores importantes das classes dominantes brasileiras, do capital financeiro internacionalizado ao agronegócio, cujas propostas costumam ser veiculadas pelos grandes meios de comunicação. Eles não têm voto, mas têm recursos que condicionam votações. Num primeiro momento, viam com desconfiança a extrema-direita, preferindo um candidato de centro ou de centro-direita para derrotar o petismo. Neste sentido, apostaram suas fichas no PSDB e em seu candidato, Geraldo Alckmin. À vista do fracasso deste último, porém, migraram em massa para a candidatura Bolsonaro, na expectativa de controlar e domesticar seu extremismo. A escolha de Paulo Guedes como ministro das finanças, um homem comprometido com programas e reformas ultraliberais, contribuiu para que se viabilizasse o apoio destas gentes.

Para encerrar, cumpre enfatizar o potencial de apoio social do qual dispõe Bolsonaro em camadas populares, o que, em parte, é assegurado pelo trabalho de base dos evangélicos, notoriamente ramificados, de forma capilar, nas comunidades mais pobres do país. Sua capacidade de comunicação, auxiliada por um trabalho profissional nas mídias sociais, só perde para a de Lula. Gestual e palavras obscenas, que chocam as camadas de elite e letradas do país, são, muitas vezes, encaradas como expressões de coragem e autenticidade, qualidades escassas entre os políticos profissionais. Não esquecer as expressivas votações de Bolsonaro nos grandes centros urbanos e nas capitais dos Estados. Mesmo na região Nordeste, que permaneceu majoritariamente fiel ao PT e a Lula, Bolsonaro venceu em grandes cidades consideradas de larga tradição de esquerda, como Recife, capital de Pernambuco. Restaria acrescentar que pesquisas recentes, ao tempo que registraram queda importante da popularidade de Bolsonaro nas classes médias, flagraram um crescimento dele nas camadas populares, o que foi atribuído ao auxílio de emergência liberado no quadro da atual pandemia[29].  

A multiplicidade e a pluralidade das bases de apoio que garantiram a vitória da extrema-direita evidenciam seu caráter profundamente heterogêneo. Uma frente política constituída de forma apressada, sem propostas claras para uma série de problemas fundamentais do país (educação, saúde, transportes públicos, segurança etc.), apoiada em ideias simplistas, salvadoras, que ignoravam – e ignoram - a complexidade das questões com as quais teria que lidar caso o candidato fosse sufragado. Apesar de declarações altissonantes – e de bravatas em série – o que se mostra claramente é que o governo e a extrema-direita não foram capazes de gestar até o momento uma doutrina coerente. Suas formulações encontrar-se-iam num estado gasoso, se a metáfora me for permitida, o que dá conta das improvisações e acochambrações diversas, mal encobertas por uma estridente e poderosa propaganda. Trata-se de uma força política cujas concepções ainda estão em formação, como uma nebulosa daí as dificuldades em conceituá-la, embora sejam bastante claros – e perigosos – seus propósitos autoritários e antidemocráticos.

Tais propósitos, como já foi assinalado, tem raízes autoritárias no passado brasileiro. Entretanto, a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com experiência do fascismo.

De um lado, as conjunturas internacionais que ensejaram as ditaduras e o fascismo histórico (e o integralismo) tem características qualitativamente diferentes das atuais. As ditaduras exprimiam alianças de classe bem definidas e projetos claros de modernização autoritária. Não é o caso da atual extrema-direita[30].

Quanto ao integralismo e ao fascismo, caberia uma análise em dois níveis[31].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identifica-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracteriza-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população. Aciona um nacionalismo exacerbado, militar, violento e expansionista e voltado para a construção de um projeto de renovação totalitária da sociedade, típico das direitas revolucionárias. Ora, este conjunto de características e de referências não se encontra no bolsonarismo[32].

Do ponto de vista da adequação e eficácia políticas do emprego do termo, há aí uma outra discussão, mas preferimos empreendê-la no próximo item, destinado ao estudo das alternativas disponíveis para lutar contra a extrema-direita.  

Ao longo do primeiro ano de mandato (2019) e até o momento (junho de 2020), a incapacidade do governo de lidar com os desafios que enfrenta, tem gerado grande desgaste a Bolsonaro, cujos índices de confiança despencaram. Tendo sido sufragado por 57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos), os índices de confiança de que ainda dispõe situam-se em torno de 30%[33].

Entretanto, as oposições não se apresentam em melhor situação. As forças de esquerda, de modo geral, permanecem no fundo da cena, sem propostas claras e sem capacidade de intervenção e mobilização. Os choques e enfrentamentos políticos se dão entre a extrema-direita e forças de centro e de centro-direita democráticos, representadas pelo Parlamento e pelo Judiciário, em particular o Supremo Tribunal Federal, constantes objetos dos ataques de grupos mais radicais da extrema-direita. Apesar das referências a um possível impeachment, a hipótese ainda parece altamente improvável, pelo menos a curto prazo. É como se no palco político, em vez de duas forças, estivessem se confrontando duas fraquezas. A extrema-direita não tem capacidade – ainda não – de derrotar o Congresso e o Judiciário. Mas estas instituições também não conseguem remover Bolsonaro.

Nestas circunstâncias, como entrever e propor alternativas?

 

4. A democracia face à extrema-direita. Desafios & Alternativas

Entre os que observam a cena política brasileira, há um consenso de que a maioria votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018 deveu-se muito mais ao antipetismo do que propriamente ao entusiasmo suscitado pelas propostas e características do candidato vitorioso.

No quadro da ampla e heterogênea frente que se formou em torno da extrema-direita, as direitas e o centro democráticos cultivavam a expectativa de que seus excessos seriam contidos, neutralizados ou domesticados.

Não foi o que ocorreu.

Bolsonaro e seus aliados mais radicais, ao contrário, embalados pelo sucesso da vitória eleitoral, autoconfiantes, desferiram, desde a posse, em janeiro de 2019, uma campanha permanente de agressões e ameaças tendo como objeto principal as instituições democráticas, mas alcançando também políticos considerados potenciais rivais e não poupando inclusive aliados desqualificados como moderados. Em vez de um golpe frontal que muitos temiam, desenhou-se uma estratégia de desgaste progressivo das margens democráticas, uma perspectiva de corroer por dentro as instituições, mantendo-as, no limite, como se fossem cascas desprovidas de conteúdo, num estilo semelhante ao empreendido por V. Orbán na Hungria[34].

Ameaçadas, as forças políticas de centro e de direita democráticas, hegemônicas no Parlamento e no Poder Judiciário, reagiram, marcando limites às pretensões ditatoriais de Bolsonaro. As tendências e os métodos chavistas, de enfraquecimento progressivo das instituições democráticas, atribuídos pelas direitas ao PT e a Lula, estariam sendo, na prática, adotados por Bolsonaro[35]. Começou então uma queda-de-braço. Manifestos de intelectuais, juristas e profissionais liberais, publicados pela imprensa, afirmavam-se na defesa das instituições democráticas. Panelaços contra Bolsonaro, em várias cidades evidenciavam um crescimento da insatisfação.

Nesta altura, a contundência dos insultos e bravatas foi se revelando mais expressão de desejos frustrados de um líder paranoico, inconformado face aos limites objetivos de seu poder pessoal, do que de uma força política real e organizada, capaz de concretizar na prática as ameaças enunciadas[36]. Configurou-se, como apontado acima, uma disputa de fraquezas: entre a extrema-direita, liderada por Bolsonaro e a direita/centro democráticos, representados por líderes parlamentares e ministros do Supremo Tribunal federal. Nenhum lado mostrava-se capaz de derrotar o outro.

Recentes acontecimentos escandalosos, envolvendo a prisão de um homem das sombras, Fabrício de Queiroz, faz-tudo de Bolsonaro e de sua família, a demissão do ministro da Educação, A. Weintraub, vinculado à militância extremada,  além de outras decisões do Supremo Tribunal Federal, empreendendo processos  contra grupos violentos de extrema-direita, mas que podem, no limite, implicar o próprio Bolsonaro, resultaram numa atmosfera de desorientação no campo da extrema-direita, acompanhada de um relativo distensionamento, inédito, desde que Bolsonaro assumiu a presidência da república[37].

Já se fazem ouvir vozes, cautelosas, prognosticando o início de uma nova etapa no governo de extrema-direita, onde este, afinal, aceitaria uma certa dose de controle e domesticação. Difícil imaginar que isto possa acontecer, dadas as características e a trajetória de Bolsonaro. A ameaça à democracia representada pela extrema-direita continua bem real. Suas bases sociais não podem ser subestimadas, podendo inclusive crescer na direção das camadas populares[38].

O dado novo é que as forças de esquerda democrática começam a sair do torpor que as caracterizou desde a derrota eleitoral de 2018. Entre elas cabe distinguir as ações empreendidas pelas esquerdas de estado e pelas esquerdas sociais.

A conceituação tem sido defendida por Carlos Vainer, professor vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/IPPUR/UFRJ). As esquerdas de estado seriam representadas pelos partidos políticos ou outras associações que disputam espaços institucionais, e ritmam seus movimentos de acordo com os calendários eleitorais. Já as esquerdas sociais seriam constituídas por lideranças que operam no tecido social, articulando e organizando movimentos que se desdobram na base da sociedade. Estas esquerdas, sempre plurais, não necessariamente haverão de estar desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém,  no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas, na medida em que as primeiras – as esquerdas de estado – têm sido aspiradas pelas alturas institucionais das lutas políticas, afastando-se claramente das dinâmicas, aspirações e movimentos que se desdobram nas bases da sociedade, onde atuam as esquerdas sociais[39].

Em contraste com uma situação de anomia que as marcou desde a derrota eleitoral de 2018, as esquerdas de estado ensaiam articulações no sentido da constituição de uma frente política em defesa da democracia.

Já as esquerdas sociais evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam  iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência.  Nas ruas, apesar dos interditos impostos pela pandemia, promovem manifestações, que passaram a disputar os espaços públicos com os grupos de extrema-direita. Nas mídias sociais, fervilham ações de diferentes tipos – debates, palestras, lives. Intelectuais e artistas formulam plataformas comuns, assinam manifestos e se pronunciam em defesa da democracia[40]. É bastante provável que, desaparecidos ou atenuados os efeitos da pandemia, brotem importantes movimentos sociais, dando vazão a demandas por melhores condições vida, serviços públicos decentes, renda básica para todos,  diminuição das desigualdades sociais etc.

Trata-se de garantir as margens democráticas existentes, reunindo em torno delas, sem exclusões, todos os que estiverem dispostos a lutar por sua preservação. A ideia de concretizar este movimento em torno de uma plataforma antifascista pode ser problemática. Para além da já referida inconsistência teórica, é de se perguntar se as amplas maiorias saberão sequer o que significa o termo fascismo. Por outro lado, e mais importante, uma frente popular democrática deveria se evidenciar como alternativa – positiva e construtiva – e não apenas se formar na base do anti, eis que tais frentes – negativas – tendem a perder o essencial: de que democracia se está falando, que democracia é preciso construir[41].

Entretanto, é preciso ir além de defender apenas as margens democráticas existentes – restritas e limitadas. Neste sentido, cabe às esquerdas democráticas – de estado e sociais - se reinventarem e se reaproximarem: a prioridade é  investir na ativação dos movimentos de rua, recuperando musculatura no tecido social, reconstruindo forças de que já dispuseram, mas as perderam, e sem as quais não conseguirão retornar ao proscênio, hoje ocupado pela extrema-direita e pelas direitas e centro democráticos.

Num plano mais geral, as esquerdas democráticas precisam formular um programa de democratização da democracia, uma condição indispensável para que as gentes tornem a se interessar – e a proteger, no limite, a se dispor a salvar – o regime democrático ameaçado.

Um conjunto complexo de desafios. Que sejam capazes de suscitar, como sugeriu Zizek (2017), a coragem da desesperança. Deste tipo de coragem é que dependerá a sorte da democracia no Brasil.

 

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Recibido: 25 de Agosto de 2020

Aceptado: 3 de Septiembre de 2020

Versión Final: 2 de Octubre de 2020



[1] O presente texto retoma, amplia e redefine questões e temas considerados em outro artigo, intitulado: Notas para a compreensão do Bolsonarismo”, publicado em abril de 2020, in: Revista de Estudos Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC/RGS, Brasil (Cf. D. Aarão Reis, 2020)

[2] Para o debate sobre a díade direita-esquerda e suas manifestações extremas, cf. Bobbio (1995) e Soper (1999). 

[3] Muitos preferem chamá-la de populismo de direita (Torney, 2019)

[4] As propostas nacionalistas autoritárias podem assumir feições diversas das manifestações de extrema-direita. É o caso dos governos da Rússia e da China, entre outros. Em certa medida, as propostas e regimes autoritários e as propostas de extrema-direita retroalimentam-se.

[5] Lideranças políticas e estudiosos têm caracterizado este processo como de ressurgência do fascismo. O debate sobre a questão será desenvolvido no ítem 3 deste artigo.

[6] Cf. Roberto Da Matta, crônica publicada em O Globo, 10 de junho de 2020, p. 3.

[7] Entre 1937 e 1945, a ditadura do Estado Novo, liderada por G. Vargas; entre 1964 e 1979, a ditadura civil-militar, presidida por cinco sucessivos generais.

[8] Entre outros, mencionaria Daniel Aarão Reis, Rodrigo Patto Sá Motta e Marcelo Ridenti (2014); Rodrigo Patto Sá Motta (2014); Denise Rollemberg (2008, 2010, 2010a); Lucia Grinberg (2009); Janaína Cordeiro (2015); Gustavo Ferreira (2015); Tatyana Maia (2012); Paulo Cesar Gomes (2019); Lívia Magalhães (2014).

[9] Nos anos 1970, tornou-se comum analisar as ditaduras latino-americanas como expressão imediata das tradições ibéricas. O conceito esfumou-se com os processos de democratização que se realizaram na... península ibérica, (Linz e A. Stepan, 1978; Linz, 2000)

[10] Na aspiração por tempos melhores, os brasileiros tendem a usar – e a abusar do – o adjetivo novo para designar mudanças que superariam mazelas do passado. A chamada nova república evidencia a reiteração do recurso, embora em sua estrutura e dinâmica fossem visíveis as marcas do velho, de continuação com o passado.

[11] Na interpretação de petistas, de lulistas e de outros agrupamentos de esquerda, o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de estado parlamentar, camuflado, efetuado por dentro das próprias instituições democráticas. Curioso é que estas forças, desde 1988, recorreram diversas vezes ao impeachment, sem que o mecanismo, essencialmente autoritário, lhes parecesse questionável.

[12] O PT foi fundado em 10 de fevereiro de 1980, na esteira de grandes movimentos sociais; e o PSDB surgiu no âmbito dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, em 25 de junho de 1988.

[13] A Comissão Nacional da Verdade, organizada em 18 de novembro de 2011, mais de trinta anos depois do fim da ditadura, até realizou um trabalho positivo, mas não conseguiu, talvez porque veio tarde demais, alterar o quadro de silêncio social sobre os crimes e legados da ditadura.

[14] A esperança em salvadores da pátria tem larga tradição no país. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor, o próprio Lula, cada um a seu modo, todos se inscreveram neste registro de alternativas salvadoras a um sistema execrado. 

[15] Cf. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/04/pesquisa-datafolha-para-presidente-bolsonaro-35-haddad-22-ciro-11-alckmin-8-marina-4.ghtml

Consultado em 24 de junho de 2020. As eleições presidenciais realizaram-se em dois turnos: 7 e 28 de outubro de 2018.

[16] A Lei n° 135, de 5 de maio de 2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, proíbe a candidatura de políticos condenados em segunda instância. A ironia é que foi promulgada pelo próprio Lula, quando no exercício de seu segundo mandato.

[17] Desde 1994, em seis sucessivas eleições presidenciais, os dois candidatos mais votados foram apresentados pelo PSDB e pelo PT.

[18] Desde 1992, em sete mandatos sucessivos, Jair Bolsonaro elegeu-se à Câmara de Deputados, defendendo interesses corporativistas das forças armadas e policiais e enfatizando a defesa do regime ditatorial.

[19] O juiz projetou-se como campeão nacional da defesa da moralidade. em virtude de seu protagonismo nos processos que desvendaram casos espetaculares de corrupção e acabaram levando à cadeia, entre muitos outros, o próprio ex-presidente Lula.

[20] O censo nacional, realizado em 2000, apurou a existência de 26,2 milhões de pessoas que se autodeclaravam evangélicas, equivalentes a 15,4% da população. Em 2010, o número saltou para 42,3 milhões, 22% da população. O IBGE calculou então que existiriam 14 mil igrejas evangélicas. Consultado em https://www.google.com/search?q=propor%C3%A7%C3%A3o+das+igrejas+evangelicas+no+brasil&oq=propor%C3%A7%C3%A3o+das+igrejas+evangelicas+no+brasil&aqs=chrome..69i57j33.12849j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

[21] Bolsonaro teve participação pífia nos debates anteriores ao atentado, que o salvou de novos debates, preservando-o de inevitáveis desgastes.

[22] Os diplomas legais emitidos no quadro do estado de exceção instaurado em 1964 foram nomeados pelos próprios autores como atos institucionais ou atos complementares. Foram 17 atos institucionais e 104 atos complementares. O mais drástico e violento foi o AI-5. 

[23] Não seria razoável afirmar que todos os referidos oficiais sejam partidários de Bolsonaro, mas é inegável que, no seu conjunto, eles constituem importante base de sustentação do atual presidente.

[24] Cf. Bolsonaro e o mundo armado no Brasil. Debate entre Luiz Eduardo Soares e Piero Lerner:   https://youtu.be/IKbCnZ4IN44. Cf. igualmente J.C. de C. Rocha (2020).

[25] O assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL-RJ, perpetrado em 14 de março de 2018, foi obra de milicianos.

[26] Entre elas, destacam-se mesmo algumas lideranças que estão no campo das esquerdas. Por outro lado, o voto evangélico pode evoluir segundo as conjunturas, não sendo os fiéis meros carneiros nas mãos de seus pastores. Cf. B.A. Cowan, 2014. Tem crescido a literatura a respeito dos evangélicos, na proporção da importância dos mesmos na sociedade e na política do país. Cf., entre outros, citados pelo autor referido: S. Baptista (2009) e M.N. Cunha (2007).

[27] Cf. nota 19

[28] Jair Bolsonaro elegeu-se pelo Partido Social Liberal/PSL, pequeno partido sem relevância, mas que se projetou com sua vitória, elegendo a maior bancada da Câmara de Deputados, em 2018. Logo depois, contudo, o Presidente eleito desentendeu-se com os dirigentes do Partido, afastou-se do mesmo, levando consigo cerca de metade da bancada e, agora, encontra-se envolvido na formação de uma novo Partido, o Aliança para o Brasil.

[29] Observe-se que o auxílio, de R$600,00 por mês, previsto para durar 3 meses, foi proposto pelo governo em apenas R$ 200,00. Nos debates no Congresso, aumentou para R$500,00 sendo, mais tarde, fixado em R$600,00 pelo próprio Bolsonaro. As pesquisas mostram, contudo, que o auxílio tem sido atribuído à Bolsonaro por amplas maiorias. Recentemente, o presidente anunciou a continuidade do auxílio, por mais três meses, em quantias decrescentes.

[30] Considere-se que muitas forças políticas caracterizaram a ditadura instaurada em 1964, e também o Estado Novo, como fascistas. Foi mais um recurso de luta política do que um conceito adequado. Com o tempo, tais denominações perderam vigência.

[31] Para o movimento integralista, cf. H. Trindade (1979) e L. Gonçalves (2018). A presença de núcleos nostálgicos do fascismo e do nazismo no interior da reação nacionalista de extrema-direita tem levado muitos a apresentar este fenômeno novo e específico como uma ressurgência do fascismo/nazismo dos anos 1930.  Foi o que tendeu a acontecer também no Brasil, em particular após o ascenso fulminante da extrema-direita. Para a especificidade do fascismo, que dispõe de abundante bibliografia, cf. Emilio Gentile (2005), sobretudo a II Parte (pp. 169-375) e Robert Paxton (2007), em particular os capítulos 7 e 8 (pp 283-361). Para uma síntese da especificidade do fascismo, segundo Paxton, cf. pp 358-361. Cf. ainda os estudos clássicos de Renzo Felice (1977) e Zeev Sternhell (1994). Para o corporativismo estatal, doutrina inspiradora do Estado Novo cf. Antonio Costa Pinto (2014). Para a vasta literatura sobre o nazismo, cf. N. Poulantzas (1978), que também considera o nazismo; I. Kershaw (2010; 2015) e R. Gelatelly (2011).

[32] Ressalvem-se interpretações que atribuem ao fascismo uma acepção mais ampla, mais elástica, enfatizando-se não propriamente a experiência histórica, mas um complexo de valores autoritários e intolerantes.  Cf. U. Eco (1995).

[33] Pesquisas realizadas entre 7 e 10 de maio de 2020 indicaram o crescimento da rejeição ao governo, alcançando patamar de 43,4% (governo ruim ou péssimo). Já os índices de aprovação caíram para 32%. Cf. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/12/cntmda-avaliacao-negativa-de-governo-bolsonaro-chega-a-434.htm, consultado em 26 de junho de 2020. Tais resultados foram confirmados em novas pesquisas, publicadas em 26 de junho de 2020.

 

[34] Observe-se que V. Orbán foi um dos poucos líderes internacionais a comparecer pessoalmente à posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019.

[35] Elio Gaspari, em sua coluna no Globo, de 10 de junho de 2020, p. 3,  registrou reflexões de lideranças políticas (Joice Hasselmann, ex-líder do PSL,  partido do governo na Câmara de Deputados) e intelectuais (José Arthur Giannotti e Denis Lerner Rosenfeld) de direita, que, embora eleitores de Bolsonaro, manifestavam alarme com seus procedimentos autoritários, classificados como chavismo de direita.

[36] Para a caracterização da paranoia de Bolsonaro e de alguns de seus auxiliares, cf. a transcrição da reunião realizada pelo conselho de ministros, presidida pelo próprio Bolsonaro, em 22 de abril de 2020: http://estaticog1.globo.com/2020/05/22/laudo_digitalizado.pdf

Filmada e gravada, o conteúdo da reunião foi divulgado por decisão da Justiça, mostrando-se Bolsonaro e vários de seus correligionários tomados por um delírio de cerco muito típico das pessoas paranoicas (perseguem, mas se sentem perseguidas). Escrevi a propósito uma crônica: Um governo em cuecas, publicada em 13 de junho de 2020, em O Globo, p. 3. Paulo Sternick, psicanalista, em 21 de junho, no mesmo jornal, p. 3, consideraria a pulsão de morte do Presidente.

[37] Fábricio Queiroz foi preso em 25 de junho pela polícia civil do Estado de São Paulo. A. Weintraub foi demitido no dia seguinte, 26 de junho. O impacto nas mídias sociais de extrema-direita, sempre muito ativas, foi flagrado por David Nemer, da Universidade de Virgínia, que registrou, no dia seguinte à prisão de Fabrício Queiroz, uma queda brusca de 48% no movimento destas mídias. Cf. O Globo, 16 de junho, p. 8.

[38] Além do núcleo de algo em torno de 30% que permanecem fiéis a Bolsonaro, recorde-se a força capilar – e popular – dos evangélicos e mais o crescimento possível como resultado de políticas assistencialistas como o já anunciado programa Renda Brasil, entre outras iniciativas possíveis.

[39] Cf. intervenção de Carlos Vainer na emissão Rebeldes, sempre, em três partes, a partir dos seguintes links: https://youtu.be/qXH0-HddWs0; https://youtu.be/CjqIGm7EwaY; https://youtu.be/24BejEGfwmQ

 

[40] Alcançaram grande repercussão, manifestos assinados por intelectuais de esquerda e do centro e direitas democráticos: “Estamos juntos”; “Basta” (juristas); “Somos 70%” e “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.

[41] Cabe assinalar, contudo, que diversas manifestações e articulações populares têm se autoidentificado como antifascistas. Assim, não é de se excluir a hipótese que esta terminologia se afirme e se generalize.